MEMÓRIA E
ESCRITA: UM OLHAR SOBRE A NARRATIVA MEMORIALÍSTICA DE RAIMUNDO NONATO DA SILVA
EM TORNO DA CIDADE DE MOSSORÓ/RN (1957-1983).
HÉLIA COSTA MORAIS*
RESUMO
O presente trabalho se propõe
analisar o processo de construção da escrita memorialística do intelectual
Raimundo Nonato da Silva acerca da cidade de Mossoró-RN. Admitindo que a
compreensão desta escrita requer o entendimento dos dispositivos que compõem a
memória individual e coletiva e o modo como estas influenciaram na sua
narrativa. A sua produção escrita se faz marcada por dimensões afetivas e
históricas, fruto da relação estabelecida com os principais grupos de
intelectuais do Estado e seus respectivos interesses locais. Instituições como
o Instituto Histórico e Geográfico do RN e o Instituto Cultural do Oeste
Potiguar, foram responsáveis por nortear muitas de suas concepções e práticas
escriturárias, bem como foram influenciadas pelo prestígio destas. A partir da
análise das suas obras Memórias de um Retirante (1957) e Evolução urbanística
de Mossoró (1983) propomo-nos investigar as construções produzidas através da
sua escrita em torno dos espaços e sujeitos da cidade de Mossoró, refletindo o
modo como os seus escritos literários e memorialísticos ajudam a construir a
história da cidade, bem como a rede de interesses que possibilitaram a sua
produção.
Palavras-Chave: Memória. Escrita.
Raimundo Nonato da Silva. Mossoró.
Raimundo Nonato da Silva nasceu em
18 de agosto de 1907 na cidade de Martins, estado do Rio Grande do Norte. Filho
de um casal de lavradores migrou para a cidade de Mossoró durante a seca de
1919, junto a uma leva de retirantes que rumava em busca de meios de
subsistência. Na cidade de Mossoró, foi engraxate, lavador de pratos, varredor
de hotel, ajudante de bodega no Mercado Público Municipal, para não citar
outras ocupações. Ingressou na Escola Normal, de onde saiu professor em 1925,
aos 18 anos de idade. Lecionou e dirigiu grupos escolares em várias cidades. Em
1955, formou-se em Direito pela Faculdade de Alagoas e foi nomeado juiz da
comarca de Apodi, em cuja função se aposentou. A partir de 1949 dedicou-se à
escrita publicando mais de 80 livros, entre os quais destacam-se obras nos campos
do romance, crônica, memória, etnografia, história, folclore, etc.
Sua trajetória intelectual foi
marcada pelo engajamento em diversas instituições, como o Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), a Academia Norte-RioGrandense de
Letras (ANL), o Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP), além de outras
instituições cuja atuação ultrapassa as fronteiras do estado, a exemplo da
Federação das Academias de Letras do Brasil, o Instituto Genealógico Brasileiro
de São Paulo, a Associação Brasileira de Escritores, o Sindicato dos
Jornalistas Liberais da Guanabara e a Sociedade Brasileira de Folclore.
Raimundo Nonato mudou-se para o Rio de Janeiro em definitivo no ano de 1961,
aonde veio a falecer em 22 de agosto de 1993, aos 86 anos de idade.
A presente investigação histórica
se propõe analisar o processo de construção da sua escrita memorialística
acerca da cidade de Mossoró. Admitindo que a compreensão da mesma requer o
entendimento dos dispositivos que compõem a memória individual e coletiva,
averiguando o modo como estas tiveram influência em sua narrativa. A sua
produção escrita se faz marcada por dimensões afetivas e históricas, fruto da
relação estabelecida com os principais grupos de intelectuais do Estado e seus
respectivos interesses locais, responsáveis por nortear muitas de suas
concepções e práticas escriturárias, mas que também foram influenciadas pelo
prestígio destas. A partir da análise das suas obras Memórias de um Retirante
(1957) e Evolução urbanística de Mossoró (1983) propomo-nos investigar as
construções produzidas através da sua escrita em torno dos espaços e sujeitos
da cidade de Mossoró, refletindo o modo como os seus escritos literários e
memorialísticos ajudam a construir a história da cidade, bem como a rede de interesses
que possibilitaram a sua produção. A discussão referente à relação entre
história e memória, aqui esboçada, se faz necessária devido o presente estudo
historiográfico embasar-se na problematização de narrativas literárias,
memorialísticas e históricas que são capazes de revelar minúcias quanto aos
sujeitos, espaços e costumes alusivos ao passado e que ajudam a reconstruir
teias de relacionamentos e experiências compartilhadas com a coletividade de
uma época.
A discussão referente à relação
entre história e memória, aqui esboçada, se faz necessária devido o presente
estudo historiográfico embasar-se na problematização de narrativas literárias,
memorialísticas e históricas que são capazes de revelar minúcias quanto aos
sujeitos, espaços e costumes alusivos ao passado e que ajudam a reconstruir
teias de relacionamentos e experiências compartilhadas com a coletividade de
uma época.
A narrativa de Raimundo Nonato,
por exemplo, revela inúmeros aspectos quanto ao modo de vida cotidiano dos
sujeitos potiguares, desde feirantes e pessoas ilustres que ocupavam o Mercado
Público Municipal de Mossoró, aos moleques que percorriam as ruas sujas da
cidade. As memórias são apresentadas nos textos através de uma espécie de
constituição poética que acaba por penetrar no terreno historiográfico e, como
afirma Júlio Pimentel, está “[...] mais interessada nos ritos de conformação do
passado do que em sua percepção no momento em que relampeja” (PINTO: 1998: p.
6) ainda que, sempre almeje estabelecer uma dialética entre presente e passado.
Cabe ao historiador, imbuído pela perspectiva histórica, operar sob uma base
crítica almejando a apreensão dos vestígios do passado, através das memórias
que são construídas e reconfiguradas temporalmente
O exercício realizado na tentativa
de relacionar o conceito de memória ao de história se justifica pelo fato de as
lembranças de Raimundo Nonato não pertencerem exclusivamente a ele, mas à
sociedade da qual fez parte, uma vez que sua narrativa fornece informações
sobre o contexto sócio-cultural no qual estava inserido. Apesar de seletiva,
parcial e passível de manipulação, a memória individual é uma fonte histórica
extremamente relevante, pois assim “[...] como todas as atividades humanas, a
memória é compartilhada, razão pela qual cada indivíduo tem algo a contribuir
para a história social” (PORTELLI, 2001).
Assim, intencionamos
problematizar os rastros construídos e legados através da narrativa
memorialística de Raimundo Nonato, de modo a perceber como estes contribuíram
para as diversas representações em torno da cidade de Mossoró. Atentando ao
modo como sua narrativa contribuiu para a historiografia da região e para a
construção de uma memória sobre sua gente, seus espaços e relações. Admite-se
que os relatos produzidos por ele atuam como agentes que interferem direta ou
indiretamente na construção identitária dos sujeitos e lugares presentes nos
espaços narrados, numa teia que abriga o tempo, o espaço e o homem
O seu relato evidencia o
entendimento de que a partir da memória individual de Raimundo Nonato é
possível a apreensão, embora parcial e seletiva, da memória social daquela
época. Compreendendo que a identidade social é organizada para além de
elementos que evidenciam a percepção de si mesmo, pois esta sofre modificações
externas a partir de critérios e negociações estabelecidas, muitas vezes, no
contato com outras pessoas. A assertiva de Cascudo não deve ser tomada,
contudo, como casual. Entre palavras elogiosas e reconhecimento que se reputa
sincero, vão se construindo as teias ou como diria Norbert Elias (2001), as
redes de sociabilidades que vão constituir e direcionar as práticas, as
identidades e as estratégias de apresentação entre os sujeitos que constroem e
legitimam uns aos outros no seio dos seus grupos.3
Nesta obra, Raimundo Nonato
promove uma narrativa minuciosa quanto aos lugares, hábitos, sujeitos e
contextos vividos compartilhados em vários momentos do passado da cidade de
Mossoró e região Oeste Potiguar. Sua escrita abriga vestígios de épocas vividas
por muitas pessoas, acabando por despertar o sentimento de identificação aos
que leem suas memórias. De modo que esse sentimento se faz tão forte que,
muitas vezes, as suas memórias podem interferir no processo de construção
identitária dos sujeitos e lugares vinculados aos espaços descritos por ele ao
longo de sua narrativa. Identifica-se, portanto, a presença de uma memória
social em seus relatos aparentemente individuais.
Sua teia narrativa abriga não
somente aspectos e impressões individuais do autor, mas revela singularidades
no que concerne às relações sociais, culturais e políticas ali estabelecidas.
Ao longo da narrativa que (re)constrói sua caminhada junto a uma leva
deretirantes que fugia das asperezas do sertão, durante a seca de 1919, retrata
os sujeitos e paisagens com as quais se deparou. Sua rememoração apresenta-se
como possível meio de resistência aos prováveis desencantamentos com o contexto
no qual ele a escreveu, propiciando a ressacralização de algumas de suas
memórias, visto que o processo de invocação ao passado através da memória está
ligado à ausência temporal; tanto de um si que não é mais o mesmo, quanto dos
outros, diante de um tempo passado, irreversivelmente deixado para trás.
Em Evolução urbanística de
Mossoró (1983), Raimundo Nonato promove outro tipo de construção narrativa
acerca da cidade. Aqui ele não recorre exclusivamente às memórias, mas se
reporta a documentos que ajudam a traçar o roteiro da cidade. Transforma sua
pesquisa em plantas que ajudam a recompor o itinerário das ruas e sua evolução
ao longo do tempo. Esta obra serve como referência a vários pesquisadores que
pretendem se deter ao estudo urbanístico da cidade de Mossoró, que conta com um
material muito escasso em relação a plantas que reportem à cidade nos tempos
passados, não se restringindo a pesquisadores da área de História.Vejamos
alguns exemplos, a seguir.
Sendo assim, é preciso ponderar
que Raimundo Nonato fazia parte de uma intelectualidade7 que intentava projetar
a cidade de Mossoró enquanto centro regional. Essa ideia foi tecida por seus
próprios intelectuais, responsáveis por promoverem representações que atestam
tal pensamento. Para eles, a “região mossoroense” compreenderia parte da
Chapada do Apodi, e esta abrangeria quase todo o estado geograficamente. De
modo que sua atribuição como região não foi considerada levando em conta apenas
seus aspectos geopolíticos; mas também o que se refere à sua produção cultural,
através do desenvolvimento de uma ideia de “cultura mossoroense”, a qual
conforme se supunha naquele contexto, seria capaz de “influenciar” os
municípios que estavam em seu entorno, que a teriam como um centro regional.
Como sugere Albuquerque Jr:
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A escrita memorialística de
Raimundo Nonato é mesclada por materialidades e subjetividades. As ruas, os
espaços e as pessoas são transformados em memória, de modo que se materializam
através da própria escrita. Presenteia-nos com relatos e descrições que
permitem investigar e compreender parte do contexto ao qual ele se refere ao
desenrolar de suas narrativas, nos fazendo vislumbrar espaços modificados pelo
tempo. Sua escrita constrói representações significativas sobre a cidade e
região Oeste Potiguar como um todo, de modo a gerar um sentimento de
identificação naqueles que leem seus relatos memorialísticos sobre um passado
que não mais retorna, mas que curiosamente parece se fazer presente nas suas
memórias “paginadas”.
Por conseguinte, as obras aqui
analisadas – mesmo que de forma breve – se apresentam como elementos
fundamentais à construção e significação identitária em torno do espaço
geográfico e sentimental mossoroense. Considerando que remontam períodos
distintos da cidade, considerando as suas mudanças ao longo do processo
histórico e contribuindo diretamente no processo de construção identitária da
cidade e dos sujeitos que se utilizam dos seus espaços.
FONTE - HÉLIA COSTA MORAIS*INTERNET